Esqueça por um momento o estresse do trabalho e imagine o paraíso.
Qualquer paraíso, pouco importa. Telúrico ou esotérico, praiando ou montanhês, ativo ou preguiçoso, meditativo ou carnal, uma coisa é certa: dificilmente ele será tecnológico.
Estejam no céu ou no quinto dos infernos, praticamente todas as visões do ambiente “perfeito” envolvem um lugar sereno, amplo como as pradarias de onde o homo sapiens evoluiu, em que todos conviveriam em harmonia, feito bons selvagens. Não tem videogame nem Google+ e não há registro de quem tenha encontrado uma tomada para plugar o iPhone.
Curiosamente, essa também é a visão que muitos têm das brincadeiras de criança, das descobertas na adolescência, das loucuras na faculdade, do luxo nos altos cargos, da independência dos autônomos, da qualidade de vida nas cidades pequenas e do sossego na aposentadoria. De fora, tudo é muito pacífico. A grama do vizinho sempre foi impecavelmente verde.
Mas basta olhá-la de perto para mudar de opinião. Crianças podem ser cruéis como poucos adultos o imaginariam, e não há entre elas quem não pense no que fazer quando finalmente crescer. Adolescentes irritram por definição. Seus corpos, roupas e expressões costumam deixar bastante claro a vontade de se isolar do mundo, se enfiar numa caverna até que essa maldita fase vá embora. A universidade é um lugar maravilhoso, pena que desperdiçado com estudantes desesperados para sair de lá, com uma pressa injustificável de trocar uma quinta-feira de sol por um estágio que, se for remunerado, mal cobrirá os custos de transporte e alimentação. Os requintes do mundo corporativo não consolam quem está cansado, ocupado ou estressado demais para aproveitá-los. Do lado de fora das corporações, é comum o funcionário público que reclame da lentidão burocrática e o autônomo que sente falta do cheque no fim do mês. Aposentados buscam ocupação para não morrer de tédio e quem mora em uma cidade pequena morre de vontade de escapar de lá.
Até mesmo aqueles que desbravam as tecnologias, criam novos empreendimentos e ganham muito dinheiro no processo acabam se cansando. Daí tiram sabáticos, e passam a maior parte do tempo pensando em como será a volta. Colocar um satélite em órbita dá muito menos trabalho do que evitar as queimaduras na reentrada.
“Pobre da alma humana, com oásis só no deserto ao lado!” dizia Fernando Pessoa. A inovação é fascinante, mas demanda tanto empenho que uma hora cansa. Períodos de transformação fascinam quando se lê a respeito, por mais que atordoem quem os vive. A mudança requer aprendizado contínuo, e isso dá uma trabalheira danada. Não tem PlayStation no paraíso porque estamos sobrecarregados da adrenalina das novidades, da imersão das experiências e do fascínio obrigatório no cotidiano. Paraíso é um lugar em que, finalmente, nada acontece. É mais fácil projetá-lo em uma época já vivida ou distante.
Sair de casa, do emprego e do relacionamento é sempre muito mais fácil do que administrá-lo. Ignorar suas demandas ou existência é mais cômodo que buscar compreendê-lo. Queiramos ou não, nossa aliança com o digital é definitiva. Procurar uma época ou local em que ele não exista é se comportar como uma criança que fecha os olhos e acredita ser invisível. Quanto mais cedo se abraçar a inovação, mais fácil decidir como se comportar ou por onde fugir.
Fonte: Folha
2 comentários
Profundo, muito profundo. Me lembrou as aulas de filosofia do ano passado, em que 80% da turma dormia heuhueuhueuuhueuuheuhue
Mas a questão é: Sem videogame, não é perfeito. E se não é perfeito, de modo algum pode ser o paraíso. hueuheuhueuh
Autor
Cara, pensei quase a mesma coisa.
Ps: Eu gostava das aulas de filosofia.